<$BlogRSDUrl$>

domingo, novembro 13, 2005

"Já não sei sonhar" (II) 

"Leio e releio aquela carta vezes sem conta. Não esperava, de todo, que me escrevesses. E o poema! A escolha do poema foi perfeita. Fernando Pessoa! Conheces a minha paixão pela poesia! Sabes quais são os meus poetas de eleição, aqueles em que me revejo, ou revi um dia. Mas tinha de ser Pessoa! Tinha de ser o primeiro poeta que te disse que gostava. Aquele que tinha uma alma que transcendia a sua unidade como ser humano e tinha a capacidade de ser quem quisesse, como eu sempre quis. Sabes que sempre tive o sonho de poder transformar-me em qualquer pessoa. Daí o meu gosto pela escrita. Escrever deixava-me exaltar os sentidos ao seu expoente máximo e ser quem eu quisesse. Sempre me faltou a coragem para dar largas a essa paixão e fazer da escrita o meu modo de vida, embora sempre me tenhas dado toda a força que precisava para isso. “That’s what friends are for!”, dizias-me tu com um grande sorriso. Mas isto era no tempo em que éramos só amigos. No tempo em que os momentos que passávamos juntos eram regados com as nossas lamentações amorosas que passados cinco minutos já era motivo de grandes gargalhadas.
Hoje é diferente! Hoje os nossos momentos são menos ocupados a falar dos outros. Hoje os nossos momentos são só nossos, embora eu os veja de um modo diferente. Para ti são momentos de duas pessoas que se perceberam na vida e que têm tudo para dar certo. Para mim são momentos de duas almas fragmentadas que não têm mais sentimentos para partilhar, e então partilham o que têm.
Ainda assim, conseguiste surpreender-me! Uma carta cheia de esperança e sentimentos reduzidos a palavras. Sempre te disse que os sentimentos são mais do que palavras, são gestos, são toques, são olhares, mas que as palavras são o único meio de darmos certezas deles. Quando te dizia isto chamavas-me sonhadora. Dizias que um dia ainda ia perceber que a vida não era nada assim e que os sentimentos eram as ilusões dos tolos. Não percebo o que mudou em ti. De um momento para o outro resolveste voltar a sentir e a amar, ou pelo menos a tentar, como se o amor fosse uma espécie de jogo que se pode escolher jogar, ou não, consoante o estado de espírito.
Não digo que não gostei da tua carta, porque isso seria mentira. Tenho um fraco por palavras, e sabes disso. Querias tocar-me de alguma maneira e conseguiste. O poema é lindíssimo, e as tuas palavras não lhe ficam atrás. Só tenho pena de não poder acreditar na frase com que terminaste aquela carta:”Ainda vou conseguir fazer-te voltar a sonhar!”. Um dia, quem sabe, também eu perceba, como tu percebeste, que mais vale ter o corpo cravejado de cicatrizes por se ter tentado e se ter falhado, do que viver refugiado numa concha longe de tudo o que possa fazer doer. Dizes que me vais conseguir mostrar que o amor vale a pena. Mas eu não consigo acreditar."


O poema da carta:

“O amor, quando se revela...
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p' ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há-de dizer
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala,
Fica só, inteiramente

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...”

(Fernando Pessoa)

Comments: Enviar um comentário

This page is powered by Blogger. Isn't yours?

Pensamentos de outros...


moon phase
 
Músicas especiais...